sexta-feira, 18 de março de 2011

Ricardo Araújo Pereira - Da parvoíce...

A geração parva deve a sua perspicácia ao facto de estar a viver o PREC da precariedade. A precariedade e o PREC, começando pelas mesmas quatro letras, designam duas conjunturas iguais em tudo menos num ponto: o PREC trouxe insegurança e instabilidade para os patrões, a precariedade traz insegurança e instabilidade para os trabalhadores.

Se eu não fosse parvo teria registado o livro em que Fialho de Almeida disse que um dos problemas de Portugal é a fatalidade de quase todos os desgraçados serem parvos. Acho que é na Vida Irónica mas, não podendo garantir, sou incapaz de citar a frase sem ser desta forma imprecisa, e que não pode deixar de se considerar parva. Que sorte. A palavra "parva" acaba de entrar fulgurantemente na discussão pública - como, aliás, há muito merecia - e, largos anos depois de Fialho de Almeida ter escrito a frase que eu, parvamente, não soube citar com mais rigor, estamos entregues à tarefa de avaliar se determinado número de pessoas é parvo por ser desgraçado ou é desgraçado na medida em que é parvo. O caso tem sido pretexto para aquilo a que Camilo chamou "virtuosas parvoiçadas", que é o título do sexto capítulo d' A Queda de Um Anjo mas também podia ser o título do debate sobre a "geração parva".

É um tema acerca do qual eu também fui, evidentemente, parvo. Há alguns meses fiz aqui umas considerações sobre a geração rasca e a geração dos quinhentos euros. Só mais tarde vim a perceber que eram ambas a mesma geração, que é também a geração à rasca e a geração parva. A minha geração tem mais nomes do que Belzebu. A primeira característica desta geração é o facto de ninguém saber bem o que lhe há de chamar. Vicente Jorge Silva chamou-lhe "geração rasca", as empresas chamaram-lhe "geração dos quinhentos euros" e a vida em geral chamou-lhe "geração à rasca". Sendo um grupo de pessoas que resiste à denominação, a geração revelou um desportivismo notável quando, chamada a denominar-se a si mesma, optou por se chamar "geração parva". Sei que, como membro da geração em causa, deveria ter o pudor de a elogiar, mas trata-se de uma geração encantadora. E esperta. Quem sabe que é parvo é um pouco menos parvo, assim como quem diz que nada sabe é um pouco menos ignorante.

No entanto, não é difícil que um conjunto de parvos tome consciência da sua própria parvoíce quando constata que não tem futuro. Esse é um tipo de desgraça que estimula a lucidez. Nesse aspeto, a geração parva deve a sua perspicácia ao facto de estar a viver o PREC da precariedade. A precariedade e o PREC, começando pelas mesmas quatro letras, designam duas conjunturas iguais em tudo menos num ponto: o PREC trouxe insegurança e instabilidade para os patrões, a precariedade traz insegurança e instabilidade para os trabalhadores. O PREC nacionalizou certas empresas e a banca, a precariedade nacionaliza o salário dos trabalhadores para acudir às necessidades de certas empresas e da banca. Quem percebe de finanças na televisão garante que a primeira conjuntura é péssima para a economia, enquanto a segunda é excelente. A primeira é intolerável, a segunda deseja-se. Esta gente é que não é parva.

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