O conto escrito por Miguel Beleza nada tem de pouco político. Começa com a frase: "Era uma vez um ministro das Finanças de Portugal." Calma, pequeninos! Não se precipitem já para as livrarias
8:30 Quarta feira, 1 de Dez de 2010
Acaba de ser publicado, com chancela da Porto Editora, um livro que merecia séria recensão nos jornais especializados. Infelizmente, e com pena minha, não há jornais especializados no subgénero em que se insere o livro em causa, que é o da literatura político-infantil. O meu interesse pela literatura político-infantil é antigo: nasceu por volta de 2001, quando tive a sorte de adquirir, no Hotel Vitória, um pequeno volume intitulado Todos Nós, uma antologia de contos infantis editada em 1980 pelo Sector de Informação da organização regional de Lisboa do PCP. Além das histórias, o livro contém desenhos igualmente infanto-ideológicos, como aquele em que as letras A e D, passeando lado a lado, avistam a letra L. "Aquela ali é a liberdade!", diz a letra A. "Assim ligadas vocês são a vergonha do alfabeto!", responde a letra L. Uma bela parábola alfabético-partidária para todas as crianças que não apreciam governos de direita.
É a essa tradição literária que pertence a obra Contos Pouco Políticos, que agora se publica. Escrito por 16 políticos, a verdade é que o livro não cumpre o que o título promete. Bem sei que, tendo em conta a atividade profissional dos autores, é muito natural que o livro contenha promessas não cumpridas. Mas, em literatura, a impostura não leva o nome de vigarice: chama-se figura de estilo. Estamos, então, perante um título que só pode ser irónico. Leia-se, por exemplo, o conto escrito por Miguel Beleza, que nada tem de pouco político. Começa com a frase: "Era uma vez um ministro das Finanças de Portugal." (p. 95) Calma, pequeninos! Não se precipitem já para as livrarias. Sei que estão ansiosos por conhecer melhor as aventuras do protagonista desta história: Stevenson fez sonhar os jovens leitores com A Ilha do Tesouro, Beleza exerce sobre eles um fascínio ainda maior com os títulos do tesouro. Qualquer conto que comece com a frase "Era uma vez um ministro das Finanças" faz com que as crianças pensem, entusiasmadas: "Ui! Temos história de piratas." É uma das mais velhas fórmulas da literatura juvenil.
Também carregado de ideologia está o conto escrito por Jerónimo de Sousa. O vilão da história contada pelo secretário-geral do PCP é um facho. Juro. "Lá em cima no céu havia um facho de fogo muito irrequieto" (p. 45). Trata-se de um meteorito que, com o mau caráter que é, aliás, próprio dos fachos, vem à terra com o objetivo de queimar um castanheiro. O objetivo do facho é estragar a amizade entre o castanheiro e uma cerejeira, mas o leitor infantil mais informado não deixará de encontrar na história o eco do Caso Portucale: onde se lê "uma cerejeira", leiam-se "2 600 sobreiros"; onde se lê "estragar uma amizade", leia-se "viabilizar a construção de um empreendimento turístico"; onde se lê "facho", leia-se, evidentemente, "governo PSD/CDS".
O conto de Carmona Rodrigues é, pelo menos, tão engajado politicamente como os outros. Conta a história de uma lagoa mágica, que só reflete a imagem das pessoas que "contribuem para a conservação do ambiente" (p. 30). O João, um rapazinho cuja imagem a lagoa não reflete, resolve "começar a pôr em prática" um "conjunto interessante de medidas" para agradar à lagoa. Uma delas é "lembrar aos pais que devem usar dispositivos redutores de caudal nas torneiras". Qualquer pessoa escreve uma história para crianças com fadas, dragões e princesas. Mas a inclusão, no universo infantil, dos dispositivos redutores de caudal, é tão tardia quanto pertinente. Se, ao bater das 12 badaladas, a Cinderela tivesse perdido, não um sapatinho de cristal, mas um dispositivo redutor de caudal de cristal, talvez o mundo fosse hoje um sítio melhor. Quando, no dia seguinte ao baile, o príncipe andasse a percorrer a aldeia em busca da torneira a que pertencia o dispositivo, não só encontraria o amor como pouparia água. Perrault, onde quer que se encontre, estará certamente corado de vergonha.
Se o leitor tem filhos pequenos e costuma ler-lhes uma história ao deitar, fará bem em adquirir este interessante livro. Sobretudo se quiser que os miúdos passem a adormecer mais depressa.
Ricardo Araújo Pereira - http://aeiou.visao.pt/
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