Nas aldeias de Proença-a-Nova há um homem por quem se espera ansiosamente. E na margem do Tejo, junto à estação de caminhos-de-ferro de Fratel há um outro que espera por quem já não vem
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A carrinha entrou pelas ruas estreitas de Vale de Água. Foi até onde pôde ir, frente a uma casa de dois pisos. Não se fez anunciar, esperam-na às sextas-feiras, a cada duas semanas. Maria Rosa Nascimento, 85 anos, e a irmã Clementina, 81, já lá vêm, sorrisos matreiros estampados no rosto. Da casa sai Eduarda Fernandes, 64 anos, rosto mais carregado. Nuno Marçal, 36 anos, larga o volante e abre as portas da sua biblioteca móvel. Clementina desata um saco e de lá tira os últimos trabalhos de sua lavra: rendinhas à mão moldadas por um fundo de garrafa plástica, compondo uma cestinha. Nuno aprecia e ela enche-se de orgulho. É o resultado das últimas revistas de bordados consultadas naquela biblioteca ambulante. "Já tenho o enxoval do meu filho, de dois anos, quase completo", brincará, depois, Nuno. São as coisas que lhe oferecem em jeito de agradecimento. Enquanto Maria Rosa e Clementina consultam as últimas edições da revista de bordados, à procura de novas inspirações, Eduarda consulta os livros. "Prefiro livros à televisão. Descansam-me a vista", diz. Nuno guia-a pelas estantes, sabe o que ela já leu e do que gosta. Eduarda seleciona três policiais da Coleção VISÃO e Um Amor Intenso, de Danielle Steel. "Não ando com muita pachorra para livros sérios", avança Eduarda, que já leu toda a obra de Jorge Amado ou de Eça de Queirós, dois autores da sua eleição. Aquela meia hora é um momento de grande calor humano. Para Eduarda - que já teve vida em Lisboa e no Brasil, e agora retornada à terra natal por alteração das condições de vida - é talvez o seu único momento de sociabilização. "É um anjo que me caiu do céu", diz, referindo-se a Nuno Marçal, que há cinco anos percorre, quatro dias por semana, as freguesias de Proença-a-Nova com a sua biblioteca móvel, um projeto financiado pela Câmara Municipal. "O aspeto social e humano é até mais importante que o de bibliotecário", considera Nuno Marçal, que conhece aquela gente como ninguém. Há sítios onde só vai por causa de uma só pessoa. "Sou o ouvinte. Ouço histórias que mais ninguém ouve. Já perderam o padre, a escola, o médico...". Há aldeias com 20, 30 pessoas no máximo. Formado em Sociologia e bibliotecário "por paixão", Nuno foi nomeado para o prémio sueco Astrid Lindgren Memorial de 2011, um galardão de 500 mil euros que distingue quem, em todo o mundo, ajuda a promover a leitura. Não ganhou, mas a nomeação já foi galardão nunca antes pensado. Depois de uma valentes risadas em conjunto, provocadas em grande parte pela jovialidade de Maria Rosa e Clementina, está na hora de seguir caminho. "Se não fossem estas duas senhoras, desaprendia de falar", atira "Eduardinha" (é assim que lhe chamam as amigas) na hora da despedida. Nuno não tem tempo a perder. Outros o aguardam na freguesia de Moita. O comboio de onde já não sai ninguém Junto ao rio Tejo, três quilómetros a descer depois de passar Fratel, concelho de Vila Nova de Rodão, há um barqueiro que espera por quem já não chega. José Sabino Antero, 59 anos, fica nas margens do rio Tejo olhando com atenção quem sai do comboio regional que ali para na estação de Caminhos de Ferro. Faz isto há 18 anos: transporta quem quer passar de uma margem a outra por um euro. Já foi pescador profissional, agora é ocasional, dependendo do lagostim que o rio lhe traz. Ali, na estação, passam oito comboios por dia. Mas são dois os comboios que já ali pararam nestas quase duas horas em que estivemos à conversa e nenhum cliente. "São cada vez menos pessoas a andar por aqui. Repare quantas pessoas leva o comboio". Uma pessoa numa carruagem, duas ou três noutra. Uma dezena distribuída por meia dúzia de carruagens, talvez. "Cada um tem a vida que tem. Nasci nesta vida. Vida reles. Mas um gajo se não gosta do que faz, não vale a pena cá andar...". E ele gosta. Bom conversador, quarta classe "bem tirada", vai discorrendo sobre como "a vida está um bocado fraca". Os clientes foram envelhecendo e morrendo e os jovens não são suficientes para substituir a clientela perdida. "Transporto, três, quatro pessoas por dia". O barco é da junta de freguesia de Fratel, mas há cerca de um ano Antero trocou os remos por um motor, com investimento próprio. "O corpo já não dá".O céu estava negro. Os relâmpagos cortavam o horizonte. Sabino mostra medo. Fica inquieto a adivinhar tempestade. "A água não me mete medo. Mas a trovoada sim. Há pouco no meio do rio era só lume". Espera pelo comboio das 19h30. Ninguém. "O país está mal porquê? Não tem orientação. Tanto comboio para quê?". Encolhe os ombros. Despede-se. Vai-se sozinho. |
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