sábado, 28 de maio de 2011

Vão mexer no meu 'spread'?


Os novos contratos de crédito habitação terão cláusulas muito específicas que permitirão aos bancos aumentar os juros quando houver "razão atendível" e/ou "variações de mercado". Saiba, quanto terá de pagar quando os seus juros - spread ou Euribor - aumentarem


Vão mexer no meu 'spread'?
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Se está prestes a comprar casa, com recurso a empréstimo bancário e no seu contrato encontrar as expressões "razão atendível" e/ou "variações de mercado", prepare-se para um aumento futuro das prestações. O Banco de Portugal (BdP) emitiu, recentemente, um Código de Conduta (ver caixa Como aumentar os spreads) sobre a utilização de cláusulas que permitam a alteração unilateral da taxa de juro e outros encargos, no qual especifica a forma como a banca deve incluí-las nos novos contratos e como os clientes podem reagir à intenção de aumentar os spreads: após notificados das alterações propostas, têm, pelo menos, 90 dias para decidirem se querem manter ou terminar o contrato. O banco central reconhece, também, em comunicado, que está fora dos seus poderes proibir a inclusão de tais cláusulas, devido ao disposto na lei (ver caixa As leis invocadas).

Esta questão não é, todavia, nova. No final de setembro de 2010, o secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor reuniu-se com quatro bancos portugueses - BCP, BES, Montepio e Banif - para avaliar a disponibilidades destes para suspenderem uma cláusula que previa precisamente a alteração unilateral da taxa de juro e que as associações de consumidores consideraram abusiva. Trata-se de uma alínea, num dos pontos do contrato, onde se apontam "alterações supervenientes do mercado" como pretexto para aumentar as taxas. Fernando Serrasqueiro garantiu à VISÃO que, se verificar abusos, não terá qualquer pudor em "intervir, recorrendo à via legislativa, restringindo a aplicação destas cláusulas". Contudo, adverte, "é preciso esperar pela interpretação que os bancos vão fazer das recomendações do BdP".

Sobre o Código de Conduta da autoria do banco central, o governante diz que "vem no seguimento de um decreto-lei de 1995 em que se faz a transposição de uma diretiva comunitária, de 1993, que abre a possibilidade de alterações nos contratos, caso se verifiquem factos relevantes". Mas serão as expressões "razão atendível" ou "variações de mercado" suficientemente precisas para evitar interpretações mais amplas? O secretário de Estado reconhece que "o BdP poderia ter sido mais preciso".

Como reclamar
Tito Rodrigues, 31 anos, jurista e responsável pelas relações institucionais da DECO - Associação Portuguesa para a Defesa dos Consumidores, é mais incisivo relativamente à instituição liderada por Carlos Costa: "O BdP está a desenterrar um morto que será muito nocivo para os consumidores." E avança, de imediato, com uma série de argumentos que os bancos poderão esgrimir para justificar uma alteração, em alta, dos spreads: "Foi negociado um pacote de ajuda externa e, a avaliar pelas previsões de crescimento, o País não conseguirá pagar os juros contratados, logo, os bancos terão maiores dificuldades em financiar-se. Por outro lado, poderá haver um novo corte dos ratings da banca, o que aumenta ainda mais as dificuldades de financiamento destas instituições. Em ambos os casos, há algo que muda, são factos relevantes e são externos ao banco." O BdP assume que as recomendações incluídas no Código de Conduta foram elaboradas tendo em vista o interesse do consumidor, mas a DECO tem uma perspetiva diferente e diz que aquele documento "abre a porta para a que a banca possa, unilateralmente, alterar os spreads e outros encargos associados aos créditos para compra de habitação".
É possível evitar a inclusão destas cláusulas nos contratos? Sim, mas é muito complicado. Dificilmente um particular tem poder ou posição negocial suficientes para contrariar um banco. "Os contratos elaborados pelas instituições financeiras são muito exaustivos e preveem situações bastante vastas, tais como a alteração do preço do contrato. São cláusulas que os particulares não têm possibilidade de negociar, e é por isso que estes contratos são considerados contratos de adesão", refere Tiago Caiado Guerreiro, 41 anos, advogado, sócio da Franco Caiado Guerreiro & Associados. Entre estes documentos e o cliente, acrescenta o jurista, "existem o BdP e os tribunais. É uma área muito cinzenta, onde se pode verificar, em alguns casos, o esticar da lei. Quem se predisponha a levar este tipo de casos a tribunal terá mais de 50% de hipóteses de ganhar", avisa. Porém, lembra, "se existir cobertura do BdP, nestas situações, aquela percentagem diminui".

Por outro lado, "é um processo que exige paciência, porque a nossa justiça é lenta - temos um processo no escritório que dura há mais de 40 anos e ainda não tem fim à vista -, e dinheiro, pois será necessário um bom advogado para conseguir bons resultados".

O que fazer, então? Tito Rodrigues diz que os consumidores que conseguiram evitar a inclusão destas cláusulas não têm com que se preocupar. Quanto aos restantes, aconselha-os a "enviar para a DECO esses contratos para que possamos, pela via judicial, declarar essas cláusulas nulas".

A questão legal
Tito Rodrigues mostra, por via de um exemplo, as razões que levam a DECO a pedir a nulidade das cláusulas de alteração unilateral dos juros: "Se chego a um banco e peço 200 mil euros para comprar um imóvel, o banco avalia a casa, avalia-me a mim e, depois, para compensar o potencial de risco identificado, atribui-me um spread" que, somado ao valor do indexante definido - geralmente a taxa euribor a 3, 6 ou 12 meses - permite encontrar a taxa anual nominal do empréstimo. "A partir do momento em que esta taxa é encontrada e o contrato é assinado, o dinheiro é emprestado e o banco está salvaguardado. Não pode, passados dez anos, alegar que houve alteração das condições de financiamento, pois esse mesmo financiamento já aconteceu, foi avaliado e teve o risco devidamente calculado", justifica o jurista da DECO. "Julgamos que há aqui uma violação do princípio da boa-fé e que se cria um desequilíbrio injustificado. Estas cláusulas são, portanto, ilegais e terão de ser declaradas nulas", conclui.
Pedro Ferreira Malaquias, 53 anos, advogado, sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, especialistas nas áreas bancária, financeira e mercado de capitais, tem um entendimento diferente. E começa a sua argumentação desmontando o processo de funding dos bancos: "Nenhum banco se financia especificamente para servir um particular num crédito para compra de casa. Tal acontecerá, porventura, com um empréstimo de grandes dimensões a uma grande empresa. Nos outros casos, o funding da banca é um processo permanente e que depende das condições do mercado. Um banco comercial tem uma rede de balcões, capta depósitos, emite dívida, pede dinheiro ao mercado. Tem várias fontes de obtenção de liquidez. O somatório de tudo isto permite calcular o custo médio de funding. E, hoje, o custo do dinheiro é um, mas amanhã é outro."

Não será o indexante, a Euribor - a taxa de juro média a que 57 grandes bancos, da União Europeia e de países terceiros, emprestam dinheiro entre si -, suficiente para encaixar as alterações de mercado e fazê-las refletir no cliente? "Se o mercado fosse perfeito, isso seria verdade, mas como não é...", observa Pedro Malaquias. "Era assim há dois ou três anos, mas essa realidade mudou. E como não existe outro indexante que reflita, hoje, os custos de funding, os bancos têm de refletir esses custos na margem", leia-se, spread, a margem de juro, ou lucro, acrescentada ao indexante contratado. Sobre a validade das cláusulas, este jurista remete para a lei, nomeadamente para "o n.º 2 do artigo 22.º das Cláusulas Contratuais Gerais", onde está prevista, precisamente, a alteração das taxas de juro e outros encargos, "desde que correspondam a variações do mercado e sejam comunicadas de imediato, por escrito, à contraparte".

A lei existe, é de 1985 - foi revista em 1995 para integrar uma diretiva comunitária - e, perante a escassez de liquidez, e os crescentes custos de financiamento, os bancos dificilmente resistirão à tentação. "Pena foi", sublinha Caiado Guerreiro, "que o BdP não tivesse feito nada, antes, para evitar que os bancos acumulassem, nos últimos anos, um tão brutal stock de crédito."

Agora, conclui, "resta-nos esperar que os bancos sejam razoáveis na aplicação destas cláusulas". Quanto a reações possíveis, o jurista vai dizendo que, de forma individual e isolada, é virtualmente impossível vencer um banco, nesta matéria. "Se não houver uma tomada de posição organizada, por parte dos consumidores, será difícil reagir."

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